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Maratonas e humores

Saíra pela manhã de casa  para correr embora não soubesse se o queria realmente. Uma força física a empurrava. Como um animal enjaulado buscava a liberdade. Enjaulada em suas próprias armadilhas existenciais.  Não suportaria estar em casa o dia inteiro. Naquela casa antiga. Precisava cuidar das partes quebradas nas lajes do pátio. Os batentes das portas descascando. Fogão e geladeira enferrujando .A gata que havia sofrido maus tratos por sua família agora  com ela. O bichano era  agitado .Devia já ter seus 15 anos, urinava na base da geladeira a noite e as vezes na porta de seu quarto. Haveria  de colocar uma bacia de areia em cada ponto onde ele urinava. Chegou ao aterro do flamengo que no domingo sempre se encontrava fechado para carros. Dava-lhe  prazer redobrado, pela amplitude de horizontes, espaço largo para correr. Sentia o corpo pesado. Sempre associava estas sensações a idade que lhe pesava mais do que deveria pois gozava de boa saúde. Ao passar pelo praça sentiu emanações negativas como ondas pelo ar que lhe tocavam o rosto. Como seres do mal buscando almas. Durante toda a passagem por aquela praça suja , cheia de odores de panos velhos e imundície de mendigos, sentiu vibrações tristes, maldosas, frias. 

 Ao pisar na pista do aterro, viu que havia maratona. Imediatamente sentiu muita raiva daquelas pessoas com a mesma camisa cor de rosa e numero no peito. Era uma raiva da vida e suas manifestações. Como aquela corrida inútil. Irritou-se mais ainda com a quantidade absurda de garrafas plásticas de água vazias jogadas na pista. Homens e mulheres corriam uns atrás dos outros, resfolegantes pela avenida. Quem seria o patrocinador daquilo tudo?  Dois ônibus que pertenciam a uma frota de linhas da cidade passaram com os dizeres no visor: meia maratona do rio. Como tudo lhe parecera inútil. Conseguiu cumprir seu trajeto nem sabe como , pois o corpo lhe pesava , nenhum pensamento alegre lhe vinha. Somente quando resolveu parar começou a refletir, a raiva se esvaindo, mas a vontade de não olhar seres humanos persistia. Só queria olhar as arvores , suas raízes, as folhas e os gatos que viviam ali. Já não importava que os homens não a olhassem com desejo, não esperava por isso mais. Mas ainda queria o prazer das mulheres que atraem.  Voltando pelo gramado deparou-se com uma árvore grandiosa, raízes como veias grosas percorrendo o tronco . Ao chão algumas cascas grossas que cobriam as veias. Com o celular  começou a filmar a árvore lentamente. Perto dois moradores de rua sentados preguiçosamente, talvez pensassem que era alguém importante filmando árvores. Um botânico quem sabe, ou um diretor de cinema. Sentia-se como aquela árvore secular , as veias a mostra sinalizavam força . O silêncio guardando seivas , abrigando pássaros. Sabia que ainda conseguiria  lutar pela vida, a sua vida. Antes que tudo se terminasse. 

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