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A cantora

Lá estava cantando músicas eternas, choros de amor e modismos do rádio, aos amigos imaginários que lhe pediam estrofes com molho ao prato. Sem vontade, cresciam sua boca e olhos ao ver que a olhavam, esperavam que seus lábios combinassem notas num crescendo interminável, ao som do conjunto. Lembrava  aquele amor tão frágil, com fervor, de como  estremecia diante dos dedos longos daquele homem, criança inocente. Seu caráter em quatro paredes, o medo da solidão, do ridículo, coisas insossas que lembravam o vazio, a insatisfação de ouvintes-dançarinos, que ignoravam seu profundo palpitar. Tão carente como as bichas que por ali apareciam e sumiam, bobos da noite. Perseguia, feito eles, com passos invisíveis, homens e mulheres nas ruas sem saber por que. 

Cantava boleros, tangos em borbotões de vogais, naquela noite. Trabalhava a voz rouca lentamente no palco pobre. A bebida passando. Os copos tilintavam no espaço lânguido do bar. Pensava nos olhos sombrios e ardentes do amante. Quando pela manhã o encontrava estendido, respirando pelos lábios finos e hirtos, exalando talvez a última conversa num bar. Talvez o cheiro dos carimbos que manuseava durante todo o dia. Ao abrir a porta todas as manhãs selava mais uma vez   a dúvida do amor que existia no quarto impregnado de uma inconstância maior. Lembra que ele se queixara mais uma vez, da luz ao acordar, mormacento.

Deu alívio , no fim da música,  de todas as músicas balbuciadas no infinito das mesas de ferro, preenchidas por clientes  oscilantes, grosseiros, tantas vezes chamando por ela, lhe lançando olhares vermelhos de excitação. Pareciam pequenas feras em gaiolas invisíveis. No fim da noite o gosto exato da terminada tarefa onde a voz encobria todas as angústias...se não fosse ter aquele homem mal amado em seu quarto de pensão, lhe abraçando vorazmente, ela sem forças, gemendo talvez antigas queixas de criança. Ele era a companhia necessária. Via os detalhes do seu corpo, sua risada longínqua, o esquecimento de que afinal   era domingo...


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