Pular para o conteúdo principal

Seu Daniel

Seu Daniel é um morador de rua antigo aqui no bairro de laranjeiras. A curiosidade  me levou a fazer uma entrevista com ele no celular. Me chamava  atenção a presença quieta deste homem, plantado na esquina com dois carrinhos de supermercado cheios de tralhas e cobertos por plásticos e panos. Sentado ali, todos os dias escrevendo com caneta em caderno de papel. Sua presença  invisível,  na esquina de  calçada muita larga, não atrapalhava a passagem das pessoas. Ninguém notava sua presença mesmo quando com 42 graus de calor ele continuasse com touca de lã e casaco de couro. Resolvi um dia  falar com ele , pedi permissão, já que  por sempre estar assim coberto, dava  medo. Sua voz, para minha surpresa soava  baixa quase balbuciada, talvez porque não conversasse há muito com ninguém. Tinha que chegar bem perto para poder ouvir o que dizia. Perguntei o que escrevia nos cadernos. Estou escrevendo a história de minha vida , disse ele. Contou que havia sido adotado por uma família de São Paulo, e tinha tristeza de não poder ter seguido a carreira de atleta.Falava  pouco e quase não respondia.Sorria, por trás daquelas roupas. Então pude ver  doçura naquele homem. Tinha a tranquilidade de quem tem certeza de que nada o tiraria dali.
Tudo parecia bem, quando da segunda vez que o encontrei percebi  que  seu Daniel  tinha visões. Consequência quem sabe de sua duradoura vida nas ruas. Isso decepcionou minha intenção de romantizar sua história, eu queria que ele fosse normal. Mas  continuava a conversar com ele quando passava por ali. Até que surgiu naquela esquina, um ponto de bicicletas patrocinadas  por um banco. Pensei , vão tirar seu Daniel. Nós próximos dias vi que ele havia se instalado ao lado de um supermercado. Durante semanas permaneceu na cadeira ainda, mas sem escrever mais. E não dormia ou cochilava como antes, permanecia muito atento por trás dos óculos imensos. Ali sentia-se ameaçado, por certo faziam chacota com ele que  temia ser expulso.  Com o tempo já não mais na cadeira, mas sentado nas barras de ferro em frente ao mercado como um segurança de sí próprio. Braços cruzados e sempre atento. Agora um estranho no ninho. Um dia em que fui fazer compras perguntei do que gostava, respondeu que só tomava leite. Seu Daniel deve ter quase 70 anos ou menos, muito magro e negro. Comprei-lhe um litro de leite. Me dava  um meio sorriso de assentimento .
                                                                                                                                                                  Um dia ao lado do supermercado Princesa vi  ajuntamento de gente  e  polícia, pensei confusão com seu Daniel. Ele afastado , de braços cruzados  observando, com  três gorros enfiados na cabeça que cobriam a testa. Uma turma efusiva tratava do seu destino.Jovens inflamados defendendo os direitos dos moradores de rua, uma vizinha indignada  que queria  retirá-lo do seu nicho,  instalado debaixo das suas janelas no segundo andar de um prédio pequeno.Ela reclamava do mau cheiro que as traquitandas do morador exalavam. Naquele dia  esta mulher  havia jogado água sobre ele  para que saísse. Quem chamou a polícia não sei. Mas como sempre tive liberdade para conversar com ele e fui ao seu encontro para saber o que estava ocorrendo. Pessoas  intervieram a seu favor e nada aconteceu. A moradora desceu, tentou se desculpar dizendo que não suportava mais o mau cheiro e que ele fazia as necessidades ali. Um bicho quase, como tantos outros moradores de rua. Os que ali estavam se surpreenderam um pouco com a naturalidade com que o tratava e com a facilidade que tinha para conversar comigo.
Mas seu Daniel ,tinha como quase todo morador de rua, traumas psicológicos. Da primeira vez que me falou da mulher que o perseguia e atormentava caminhando dentro do mercado,me assustei. Dizia que ela era como um espírito malévolo que aparecia para apavorá-lo. Mas que ele estava protegido e ela não conseguiria atingí-lo.

Por que o senhor não sai daqui da frente deste mercado vai para um lugar tranquilo,volta a escrever seu livro o que acha? Não posso! diz ele. Sou casado, e apontava   o dedo para uma aliança imaginária. Casado com esta mulher que me persegue, atormenta, então não posso sair daqui! Olha lá está ela, e apontava para dentro do mercado. Eram flashs de memória.  Um ator representando sua loucura e aquilo me assombrava. Procurava não exaltá-lo porque não queria que o vissem como alguém agressivo.
Há poucos dias o vi escrevendo em um pedaço de papelão. Pensei é preciso dar papel e caneta a este homem para que extravase energia. Perguntei o que estava escrevendo e reclamou dizendo que não enxergava direito.Os óculos os usava na ponta do nariz e  não serviam para ele, muito fortes. Seu mau humor era engraçado. Se não estivesse com aquela roupa assustadora poderia talvez conseguir mais colaboradores. E a noite seu Daniel o senhor não tem medo? Ninguém se aproxima de mim! Eles não conseguem, minha reza é forte. O senhor não come nada? Não só tomo líquido , porque da cintura para cima eu sou todo de platina. É certo que existe pressão para que  saia dali pois é feio , preto, sujo,  assustador com aquelas toucas enfiadas só com os olhos de fora. Parece  ninja com  casaco de couro encardido.  Com certeza , se não fosse lugar de movimento, pois tem um ponto de ônibus, passasse despercebido. Acho até que se meter no torvelinho  da dura realidade está fazendo bem a ele. Hoje passei e suas coisas sumiram, achei que estaria triste ou com rancor, mas disse convicto: não havia nada importante ali mesmo. Mas para onde levaram?  E com um gesto de mãos de pouco me importa, disse o caminhão do lixo levou. Ali ele tinha uma cadeira, suas anotações , os livros e o que seria o seu universo, ou a sua casa imaginária. Mas onde o senhor vai dormir agora? Quase indignado responde, eu tenho 50 anos de rua , dou meu jeito.

O vídeo abaixo foi gravado em  2017 quando este morador de rua ficava tranquilo na esquina da Pereira da Silva. Agora  seu ponto é em frente ao supermercado Princesa onde recebe doações de moradores.



Postagens mais visitadas deste blog

O CAMINHO DO MEDO

Deixava-se inundar pela angústia como uma roupa usada a qual se agarrava para não alcançar a felicidade. Sempre achara que não merecia ser feliz. Não conseguia sentir-se em casa naquela lugar. Sentia-se uma intrusa no meio daquelas pessoas, quase uma criminosa. Tinha sido nesse tempo que morara ali,  frágil,  envolvendo-se em conflitos com moradores da casa. C asa  acolhedora, bonita, em o a uma vila arborizada, tranquila. Poderia ter sido feliz ali, mas não. Será que ainda seria tempo A imagem que criara a incomodava,  de uma mulher quebrada financeiramente, com parentes viciados em drogas. Esquisita, desiquilibrada. Problemas no aluguel havia tido.  Precisaria ganhar mais dinheiro para sair. Mas a  depressão ia minando as iniciativas que poderiam ser tomadas para ter mais sucesso profissional. A tristeza por ver-se menos bela e desejada. Então castigava-se.  Já não suportava ficar sózinha. Questionava-se se aquilo seria produto dos seus medos, um cansaço de si. Suportar-se era o gran

Jogou fora os remédios

Nesse dia jogou fora o Rivotril na pia espirrando seu conteúdo no ralo, como uma bisnaga. O líquido viscoso com gosto bom, levemente adocicado que havia acompanhado seus dias durante uma década. Durante dois anos tentou livrar-se muito lentamente do benzoazepínico pois havia chegado ao número de 37 gotas,  equivalente a 4 comprimidos de 2mg . Tomava à noite para dormir  seis horas reconfortantes de sono. Depois de tanto sacrifício teve as recaídas. Ia buscar no posto médico um tubinho, tirava o rótulo. Por três vezes pegou o remédio para depois jogar fora.   Tinha  medo da angústia que ainda  acompanhava sua rotina. Foram várias recaídas, pingava na palma da mão  3, 4 , até 5 gotas em dias perversos. Sempre quando acordava no meio da noite cheia de medo do presente. Sabia que se ficasse com ele novamente não poderia mais seguir como planejara. Firme , enfrentando pensamentos sombrios que tornavam sua mente um lugar insuportável de estar. Nesse dia acordou sentindo no corpo uma triste

Urgência de viver

  Era uma urgência de viver tão grande que não lhe permitia pensar. Era um vozerio de tanta gente em sua cabeça que não lhe permitia gostar das pessoas. Em alguns momentos até gostava, como do filho. Um amor dolorido por que de precisar . Precisar tanto que já não servia para nada. Se buscava nos espelhos, se refazia nos olhares que lançava as pessoas na rua. Quem eram aqueles seres costas recurvadas que tanto lhe apavoravam.? Estaria ficando louca talvez. Mas não tinha certeza. O que sabia era que precisava fazer. Agir. Ter coragem de se olhar no espelho e gostar de si mesma. Por que foram tantos erros que deixara de gostar.